Muita gente me pergunta sobre a letra de Odisséia. Ela se distingue das demais canções do disco pelo vocabulário e quantidade de imagens que possui. Aproxima-se um pouco de Ouro, que também apresenta um tom épico e é bastante imagética, mas Odisséia vai um pouco além na densidade do conteúdo simbólico.
Foi escrita em uma época em que estava imerso em uma busca pelo autoconhecimento e a espitirualidade. Havia mudado minha alimentação para uma dieta vegetariana, estudava na Eubiose e concentrava minhas leituras em matérias que me auxiliassem naquele caminho.
Entre essas leituras, encontravam-se livros sobre a psicologia analítica, de Carl Gustav Jung e seus discípulos.
O que me aproximou da obra de Jung foi o fato de que, ao mesmo tempo em que trocava informações com gênios da física, como Albert Einstein e Wolfgang Pauli, buscava lastro para sua idéias na alquimia, na mitologia, em estudos sobre os povos primitivos da Ásia, África e Índios da América do Norte, tendo encontrado nos simbolismos destas culturas elementos fundamentais para compreensão do desenvolvimento humano.
Através desses estudos, Jung percebeu que diferentes povos possuíam os mesmos conteúdos inconscientes, formados pelos mesmos arquétipos, modelos inatos que servem de matriz para o desenvolvimento da psique, como a figura da morte, da Grande-Mãe, do Herói, do Velho Sábio, da sombra, da ânima e do ânimus, entre outros.
Jung denominou essa camada mais profunda da psique, pré-existente ao consciente e carregada de conteúdos herdados dos ancestrais, de inconsciente coletivo.
Segundo Nise da Silveira, uma de suas discípulas brasileiras, criadora do Museu do Inconsciente, “pode-se representar a psique como um vasto oceano (inconsciente) no qual emerge uma pequena ilha (consciente).”
Quando escrevi Odisséia, acabara de ler o livro homônimo de Homero, onde se encontram muitos desses arquétipos de que fala Jung.
Ulisses, o herói, que retorna de Guerra de Tróia, enfrenta o mar com seus monstros e intempéries, para regressar a Ítaca, a ilha onde sua esposa, Penélope, lhe espera. Ícone de virtude, rainha, esposa, mãe modelar, Penélope, durante o dia, tece um véu e o desmacha à noite, pois quando terminá-lo deverá desposar um dos inúmeros pretendentes a tomar o lugar de seu marido, dado como morto. Na esperança de que Ulisses permanece vivo, usa o ardil do véu para aguardar sua chegada.
Por sua vez, Ulisses, em sua odisséia depara-se com inúmeros perigos e tentações, enfrenta a fúria de Poseidon, Deus dos mares, e é arremessado à ilha de Ogígia, onde fica sete anos prisioneiro de Calipso, até Pallas Atena intervir junto a Zeus, que obriga a Deusa Ninfa a libertá-lo.
No decurso de suas perambulações, vai parar em Eana, ilha onde habita Circe, uma Deusa Feiticeira que transforma a sua tripulação em porcos, uma forma de simbolizar os instintos primitivos do homem.
Auxiliado por Hermes, o mensageiro, Ulisses consegue subjugar a feiticeira, que devolve aos marinheiros suas formas e trata a todos com tal hospitalidade que Ulisses chega a esquecer por uns dias os seus objetivos. Depois é chamado à razão por seus companheiros e, auxiliado por Circe, segue viagem.
No caminho, pede para ser amarrado ao mastro do navio para não ceder ao canto das Sereias, e ainda enfrenta o Ciclope, os monstros marinhos Cila e Caríbdes todos símbolos de ritos de passagem, portões pelos quais se deve passar quando se busca o caminho da evolução.
No caminho, pede para ser amarrado ao mastro do navio para não ceder ao canto das Sereias, e ainda enfrenta o Ciclope, os monstros marinhos Cila e Caríbdes todos símbolos de ritos de passagem, portões pelos quais se deve passar quando se busca o caminho da evolução.
Não lembro exatamente a ordem cronológica dos obstáculos porque passa o herói e não pretendo me estender nesse resumo do clássico grego, pois que senão perderemos de vista o objetivo principal dessa publicação. Aconselho, entretanto, a leitura do livro de Homero, que é muito rico e certamente vai inspirar muitas coisas boas.
Voltando à minha canção, sua primeira estrofe já aponta para essa interpretação de mar como inconsciente e toda aventura que se desenrola durante a música não é mais do que uma viagem iniciática, onde os monstros representam os guardiães dos portões do conhecimento.
A lança e a espada surgem como símbolos fálicos, as armas do guerreiro e representam seus aspectos externos, sua masculinidade, bravura e racionalidade. Penélope, Circe, Pallas Atena e as sereias representam o feminino, em seus diferentes aspectos, subjacente no inconsciente do homem e que, pela psicologia Junguiana, recebe o nome de ânima.
Atena, a Deusa e Penélope, a esposa, representam o lado claro do feminino e Circe e as sereias o lado obscuro, perigoso. Diz-se que a individuação se processa quando os aspectos do consciente e do inconsciente se harmonizam e se complementam. No homem essa complementação se dá com uma integração, ao consciente, de sua ânima, seu aspecto feminino. A mulher se completa ao integrar ao consciente o ânimus, arquétipo masculino presente no inconsciente.
Mas a canção não pretende dirigir o ouvinte e sim seduzí-lo a embarcar em uma viagem, onde cada um poderá fazer seu roteiro e inferir sua próprias interpretacões.
Na frase “Uma Deusa me quer bem”, por exemplo, posso estar me referindo a Pallas Atena ou a uma mulher de carne e osso que simbolize essa energia da Deusa. Quando digo “periga existir meu nada querer, oh! meu talismã” refiro-me a uma idéia budista de acalmar os desejos e de “sem querer ser, merecer ser”. Ao mesmo tempo, o talismã pode simbolizar um objeto ou uma pessoa que dá sorte e que só alcançamos quando deixamos de lado as ansiedades e as inquietudes decorrentes da escravidão dos quereres.
Nisso há uma contradição e, se não houvesse não seria interessante. Essa contradição reside no fato de as libidos (não no sentido freudiano, puramente sexual), mas no sentido Junguiano de pulsão vital, serem a mola para a realização das coisas. Como então querer não querendo? Nisso há uma diferença muito sutil, da qual conheço o sabor, mas que não sei expressar com palavras.
Descobrir o relicário, é tirar o véu (a cobertura) e encontrar a chama acesa é ver, dentro de si mesmo, a centelha divina.
Agora é com vocês. Nos encontramos nos comentários.
ODISSÉIA por Antonio Villeroy
Uma luz esquiva tinge o céu deserto, tudo é desafio nesse momento
Começo de uma rota sinuosa, sob o hálito viscoso de neblina
Tomo a espada sobre a palma sem abalo,
e avanço pela espuma sulfurina
Periga existir, periga existir
Meu nada querer, oh! meu talismã…
São muito perigos, são duros castigos ao corpo nu, na amplidão
Mas vago sem trégua,
são sete mil léguas onde os tesouros estão
Quantos ardis sobre a negra nau,
o embate é solitário e é forte a correnteza
Vou dar muito além, um erro é fatal,
mas nada me detém
Uma Deusa me
quer bem
Periga existir…
Em domínios estrangeiros vou por terra,
uma lua negra paira sobre o vento
Sei das provas que o destino me reserva, deixo firme as provisões do armamento
Pressinto a batalha monstruosa
contra a fúria das medusas e gigantes
Levo ao punho minha lança poderosa
e avanço pela escarpa cintilante
Periga existir…
São muitos algozes, são monstros ferozes os guardiães
do templo onde vou
Mas luto sem prece, o
céu estremece, quem sabe um
Deus me guiou
Venço num triz o duelo final, escubro o relicário e encontro a chama acesa
Já posso voltar, o mar é cruel,
mas um vento veloz vem
Uma Deusa
me quer bem!
Periga existir…