terça-feira, 22 de junho de 2010

OS JOSÉS DE JOSÉ







Quando finalizei o CD, em fevereiro ficara faltando uma canção, cuja letra eu havia confiado a um mestre nessa arte e que não a havia concluído. Esperava eu encontrar entre os versos dessa canção uma palavra ou expressão com que pudesse nomear meu disco.

Na ausência da 12ª música fiquei a buscar o título entre as idéias já existentes. Cheguei a pensar em Um e Dois, título de uma das faixas, para mim, mais significativas do álbum e também em Canções à Texto, numa menção aportuguesada àquilo que os franceses chamam de Chansons à Text, que é quando a letra assume um lugar importante na obra.


Mas não queria me valer do nome de uma canção sem que ela refletisse a totalidade do disco e achei que a segunda opção poderia soar pretenciosa, embora julgasse ter realizado com esse CD o meu trabalho mais bem acabado nesse sentido, das relações de letra e música, de forma e conteúdo.

Um dia ocorreu-me a idéia de José, por possuir para mim inúmeros significados que expliicarei a seguir.

No começo de minha carreira, era conhecido como Totonho Villeroy. Mas, devido aos meus trabalhos no exterior e, percebendo a dificuldade dos americanos e europeus em pronunciar corretamente o dígrafo “nh”, presente somente na língua portuguesa, aproveitei o lançamento de meu CD/DVD Sinal dos Tempos, em 2006, para passar a utilizar Antonio no lugar de Totonho, por ser aquele um nome mais universal e que, de certa forma, refletia melhor meu momento profissional.

Em minha mais recente turnê pelo continente europeu, em 2009, respirei as facilidades que o nome Antonio me proporcionaram.

Aqui no Brasil, algumas pessoas ainda relutam. No trato pessoal, acho normal e até me apraz quando tratam-me pelo apelido, mas não gosto mais de ver ou ouvir Totonho relacionado às questões profissionais ou quando anunciado nos meios de comunicação.

O que ainda pouca gente sabe é que, em minha carteira de identidade, está escrito José Antonio Franco Villeroy. Foi com esse nome que fui batizado, registrado, matriculado na escola e foi por ele que busquei e encontrei com alegria na lista dos aprovados do vestibular, é como consta na carteira da Ordem dos Músicos e como trato as
questões civis e assino meus contratos.

Portanto, por trás de Totonho e Antonio sempre houve um José.

Esse era o nome de meu avô materno, conhecido em São Gabriel, onde nasci, como Zeca Franco, o seu Zeca, com quem aprendi muitas coisas e que foi uma de minhas mais fortes referências, como homem trabalhador e chefe de família.

Quando vim ao mundo, ele já contava 67 anos.
Era avô com cara de avô, de cabelos brancos, já não montava mais à cavalo, mas ainda plantava trigo auxiliado por meu tio Benedito, que administrava o seu patrimônio .

Constumava levantar-se pelas 5 da matina, fazia seu mate e ficava à beira do fogo até que minha avó, Maria (sim eram Maria e José), viesse a despertar e preparar o café da manhã, por volta das 6, o orvalho branqueando tudo o que havia do lado de fora e embaçando os vidros das janelas.

O vô, como simplesmente o chamávamos, picava fumo de rolo, fazia seu cigarro de palha e pegava com os dedos rudes um toco de madeira com a ponta em brasa para acendê-lo.

E, enquanto as primeiras aves chilreavam no pátio, sorvia seu chimarrão com uma bomba de prata e bocal de ouro imersa em uma cuia curtida, redonda e bonita como os seios de mulher morena.

O verde vivo da erva, os movimentos do fogo fazendo projeções na sala, o cheiro da lenha queimando e os estalidos que isso provocava fixavam-se como puras sensações em minha memória sem que eu sequer imaginasse vir, um dia, sobre elas discorrer.

Ouvia nas ondas curtas do rádio as notícias do mundo e os recados do mensageiro rural que auxiliava os "sem telefone" sobre parentes que
chegavam, um socorro a ser prestado ou que alguém era esperado com cavalo encilhado na porteira de uma beira de estrada.

Minha mãe queria batizar-me de Antonio, mas meu avô reclamou que nenhum neto possuía seu nome e assim nasci José Antonio.

Isso explica apenas uma parte do título do disco, José, mas não foi somente por essa razão que inclinei-me por esse nome.






No mês de fevereiro passado, num dia chuvoso e de ressaca em que o mar havia avançado sobre a rua deparei-me e fotografei um peixe sobre a ciclovia, uma imagem forte que partilhei num album do Facebook.


Caminhei pela praia a fazer fotos, querendo enquandrar gaivotas que alçavam vôo à medida em que as ondas lambiam a areia.

E quando a maré avançava, o que vinha não era uma água límpida, mas uma espuma marrom que trazia consigo garrafas pet e outras formas de lixo humano.

Veio-me a pergunta “ E agora José” do poema de Drumond, onde o poeta indaga-se a si mesmo com autocrítica, como se, ao mesmo tempo, questionasse o homem comum, o indivíduo que pergunta-se para onde ir depois que a festa acaba, que a noite esfria, e que esta só, marchando sem direção.





Essas perguntas ecoaram diante de mim, olhando o mar marrom, e tentando saber onde vamos parar, quais nossas saídas para os problemas globais que se apresentam, de escassez de recursos naturais, de poluição em um nível insuportável, cujas consequências estamos vendo e sentindo todos os dias, das diferenças sociais a cada dia mais agudas, gerando sociedades marginais e poderes paralelos e uma legião de jovens drogados e sem perspectivas entre inúmeras outras questões.


A solidão que senti nesse momento, tendo sob meus pés a areia fina transportou-me ao José Bíblico, filho de Abraão que foi vendido por seus irmãos ao Egito e que serviu a Putifar, cuja mulher tentou seduzí-lo e, diante de suas recusas, acusou-o (in)justamente do contrário o que o levou à prisão, onde angariou a confiança do carcereiro e, por sua habilidade em decifrar sonhos, foi um dia chamado pelo Faraó para decifrar dois sonhos seus, o das sete vacas gordas que eram engolidas por sete vacas magras e o das sete espigas fartas engolidas por outras sete espigas secas, que José interpretou como sendo um período de sete anos de boas safras seguido de um outro, de escassez, de igual tamanho e aconselhou o Faraó a armazenar suprimentos durante a fartura para enfrentar o periodo difícil, sendo, por sua sabedoria, nomeado administrador geral do Egito, vindo mais tarde a reencontrar e perdoar seus irmãos, que buscaram Jacó para que todos vivessem juntos durante aqueles anos em que a penúria se abateu sobre aquela região onde começa história do mundo judaico cristão.

Os doze filhos de jacó deram origem às doze tribos de Israel.




Pesquisando sobre as origens do nome José, descobri que em hebraico é Yossef, derivado
da palavra "Yoseph , cujo significado é "Deus acrescenta, provê", o que fica em consonância com o título José, O Provedor, do terceiro volume da obra de Thomas Mann sobre o personagem bíblico a que acabo de me referir.

Aos poucos foram me ocorrendo outros personagens com esse nome, entre eles, o cabo do exército que perde a cabeça ao apaixonar-se po Carmem e a mata no 4º ato da ópera de Bizet; o José Costas do livro Budapeste de Chico Buarque, que é um ghost writer e que me fez pensar que muitos compositores passam a vida no ostracismo sem obter reconhecimento pelo seu trabalho.

Eu mesmo, até há alguns anos atrás, sentia um pouco essa sensação, possuindo uma grande quantidade de músicas gravadas por outros artistas, sem que a maior parte das pessoas tivesse ciência disso.

Hoje contando com mais de uma centena de músicas gravadas, percebo que um grande público já reconhece minha assinatura de autor compositor, independente da voz que esteja entoando a canção, e cada vez mais pessoas se interessam pelas interpretações que faço de minhas obras.

Isso reflete-se nos shows lotados, não só no Brasil como em algumas cidades da Europa.

Atualmente circulando pelas redes sociais, encontro muitos twitteiros anônimos, pessoas que valem-se de um nick sem identificar-se e que possuem um grande número de seguidores. Não deixam de ser ghost writers voluntários.

José pode ser, portanto, o personagem bíblico, o homem comum, o Zé da Silva, típico brasileiro, o sujeito anônimo, o ghostwriter, um andarilho cigano, que em língua hispânica é gitano, derivado de egiptano, e por isso falo “ … até um dia encontrar seu devido lugar num Egito qualquer, Gitano que és …”

Todas essas reflexões aparecem em “E agora você”, a canção que encerra e sintetiza o CD (Gramado Suplementar é faixa bonus), fazendo um arco que começa no Egito, passando pela Penísnsula Ibérica de espanhóis e portugueses, tangenciando o José de Drumond, com seu terno de vidro, para completar o desenho no José de hoje, com o qual me identifico, a reciclar e a renovar o ar, pulando as pedras do caminho (mais uma referência a Drumond), sem culpa, sem remorso e sem juízo.

Ao falar essa frase, refiro-me à necessidade de libertação do fardo da culpa judaico cristã e de abolir os julgamentos prévios, os pré conceitos e tirar a sobrecarga da idéia de um juízo final implacável que venha a inibir o exercício do livre arbítrio e da capacidade de dirigir a própria vida com sabedoria.

Para isso valho-me ainda de uma sentença atribuída a Pompeu (aquele que com César e Crasso formou o 1º Triunvirato de Roma), e que foi também adotada por Fernando Pessoa e, posteriormente, por Caetano Veloso na sua música os Argonautas:
"navegar é preciso, viver não é preciso"

Por volta de 70 a.C., Pompeu foi enviado à Sicília para escoltar uma frota com provisões para Roma, que passava fome diante de uma rebelião de escravos liderada por Espártaco. Com os navios prontos para partir, o comandante da frota anteviu uma tempestade e sugeriu a Pompeu que adiassem a partida. Segundo o historiador romano Plutarco, foi nessa hora que o general disse:
Navigare necesse, vivere non necesse.

Pessoa tomou-a para em si em um poema para dizer que viver não é necessário; o que é necessário é criar, para tornar sua vida grande.

Mas há também para essa frase a conotação de que para navegar exige-se precisão de cálculo, dos ventos, das distâncias e direções, ao passo em que a vida não é exata, não é precisa, há o acaso, o que nos exige um outro tipo de atenção, que nos permite aproveitar o inesperado a nosso favor.

E com uma adaptação daquela frase faço o arremate de José:

Saber navegar
que é preciso
viver

Com vários sentidos, de que navegar é necessário e exige precisão, porque é imprescindível viver.

Esse texto ainda será editado e receberá acréscimos, mas faço questão de publicá-lo assim mesmo com todos seus erros que uma posterior revisão abrandará.

Na foto do alto do post, está meu vô Zeca, sentado do lado direito, com amigos. É importante notar que o seu lenço é branco e que os seus parceiros usam lenço vermelho.

Para uma foto datada de 1924 isso tem enorme significado, pois o Rio Grande do Sul estava vivendo um conflito político de grandes proporções que opunha os federalistas (lenço vermelho, alcunhados de maragatos), que lutavam pela descentralização do poder, e os Republicanos (lenço branco, ou ximangos, como eram chamados, devido ao apelido dado por Ramiro Barcelos ao então governador do estado do RS, Borges de Medeiros), que eram constitucionalistas, seguidores dos princípios filosóficos do positivista Augusto Comte.

O fato de ximangos e maragatos dividirem o mate significa uma enorme tolerância entre os amigos, numa época em que havia muita matança até mesmo entre parentes que não partilhavam dos mesmos ideais

Amanhã, às 19h30, tem show na Modern Sound. Entrada franca.

Quem chegar será bem vindo.

Até mais.
Namastê.

9 comentários:

Fabiana. disse...

Os detalhismos de cenas que conta no post tem a subjetividade que eu amo interpretar e costumo fazê-lo à minha maneira também.

Tanto quanto na história do mundo quanto na história familiar há o link 'José' que reúne um sentido único. E isso foi buscado concha a concha de um imenso mar que iam sendo abertos e cada um trazia sua pérola, aparentemente iguais...


Pra quem curtiu o pocket show na Modern Sound, irreplaceable !

MADAMERAMANDA disse...

HISTÓRIA LINDA DO "JOSÉ"!!!!!!
AMEiiiiii

HAHAHA...O SUMIDO APARECEU!!!!!NEM ACREDITOOOOOO

BJUS VILLE


MADAME RAMANDA,A VIDENTE HÚNGARA!!!!

RJ,23/06/2010

Giselle disse...

Acho foda como vc consegue enriquecer as historias!Eita cuca boooaa!!
Hoje posso dizer que após o Antonio cantor e compositor ,em minha vida, percebo muito mais todos os compositores. E tenho uma admiraçaõ enorme por todos, que muitas vezes nao tem o prestigio de suas letras associadas ao seu nome.
O José ta lindo, pude conferir, e tambem sua historia!Infelizmente, moro tao longe e nem tao cedo poderei prestigiar o seu trabalho ao vivo.Mas um dia ainda rola um "tête-à-tête"...rs
Fiquei bem alegre quando vi no twitter que tinha post novo!Tava com saudade disso aqui!Some nããããoo!!

Otima semana.Bjão! =]

Veluma Nunes disse...

Nem acredito que estou lendo uma postagem aqui na camera que filma.
Já deixei o meu comentario sobre José em suas outras redes.
Porém resumo aqui o que achei,
Por trás de um Antônio, um Pedro, Um Jorge, Um André sempre existe um José.
Sinceramente , pra mim hoje o cantor e compositor Antônio Villeroy entra em sua melhor fase da carreira.
Com um publico caloroso, uma bandástica extraordinária, arranjos perfeitos, melhores músicas da carreira e tudo que existe de melhor, esse é o MARAVILHOSO JOSÉ!

Estou amando tanto essa turnê e essa fase que você não tem noção tots.

Mil beijocas. Luma

=)

Ana Lins disse...

Adoro esse seu lado escritor cheio de detalhes e histórias. Me encanta ainda mais. Isso revela e reforça o quão bom compositor vc é. Reflete nas músicas e no seu som... É sempre bom te ler aqui, assim como é bom me deliciar com suas fotos lá no face...revelando seu lado fotógrafo tb bom... rs


Confesso que Totonho é bem frequente na minha boca...tô me acostumando com Antonio... Tb é verdade que estranho qndo nas rádios falam Totonho Villeroy ao invés de Antonio Villeroy...vai entender. rs

Adorei as histórias de José. Tem sempre um José por trás de um Grande Homem. ;D

Bom fds.

bjão

Anônimo disse...

Seja José, Antonio, Totonho, vc é o cara! São múltiplos Josés dentro de uma só pessoa! Te admiro demais. Postagem maravilhosa como sempre, arrasou! Bjs.

Luana Marcelle disse...

Eu babo nas palavras desse José! Admiro demais! Aprendo demais com esse blog!!! Bjs, Luana Marcelle.

Mauro Castro disse...

Aquele teu disco Trânsito, foi a trilha sonora da minha mais alucinante paixão. Achei que tu gostarias de saber disso, mesmo depois de tanto tempo.
Ela (a paixão) não sei onde anda... nem o meu disco.
Há braços!!

Anônimo disse...

que bom esse retorno no seu blog.... ansiosa por outros posts... bjo! ah... e pra saber das atualizações já estou te seguindo no twtter! rs bjo