domingo, 1 de agosto de 2010

BETE, LARA E O TSUNAMI










Outra noite sonhei com um mar seco. O fundo era pavimentado com cimento. Os marinheiros no cais diziam que era apenas a vazante, que era normal e que logo poderiamos embarcar.

Eu e meu pai, numa budega do porto, oferecemos uma jarra de whisky ao dono do barco que nos levaria

Minha mulher eu não via, apenas ouvia sua voz.
E se for um Tsunami, perguntei.
Meu pai não acreditava. E minha mulher achava que se assim fosse os marujos não estariam tão tranquilos

Um cheiro de haxixe entrou pelas frestas da janela. Lá fora o mundo não era exatamente igual como antes. E os donos do barco não mais estavam. Sugeri que tomássemos outro rumo, em direção à serra antes que viesse a onda.

Então lembrei de São Luis do Maranhão, que para se viajar a Alcântara, há que se esperar a cheia. Não sei se lembrei disso no sonho ou quando já olhava para o teto, no começo da manhã.

E segui pensando em São Luis, da vez em que fui passear em Alcântara após brigar com meu amigo, R, viciado em merla, uma borra de coca semelhante ao crack que mistura-se ao cigarro ou no baseado.

Fiquei puto com esse cara que dizia ter parado com seu vício e que fumegava escondido pra depois voltar com os sintomas inconfundíveis e brincar com os filhos.

Achei inconcebível. Discuti com ele e seu irmão, que estava na mesma, e, em sinal de protesto, resolvi sair de casa e fui direto ao porto onde os barcos esperavam a hora de embarcar.

Na ida para Alcântara muita gente teve enjôo. Lá comprei uma moeda antiga e caminhei até o final da tarde. Minha cabeça ardia de preocupação com meu amigo e pensava o que podia fazer em relação ao seu problema. Esses pensamentos ofuscaram o brilho da paisagem e as casas velhas do vilarejo ficaram com um ar ainda mais embaçado.

Voltei para São Luis numa lancha inflável sobre um mar encrespado levando água pelo rosto o que me deu uma disposição incrível pra encarar a noite que começava.
Pedi para me deixarem numa praia e desembarquei com a água na altura dos joelhos, os chinelos nas mãos, a bermuda molhando na barra.

O sol já tinha se posto e as luzes da cidade se faziam ver. Um casal namorava na beira e nem notou minha presença.

Não tencionava voltar à casa de meu amigo, onde estava hospedado, e fui procurar um lugar onde fazer um lanche. Entrei num botequim de esquina onde o cheiro de fritura imperava. Precisava comer algo urgente e optei por um bolinho de bacalhau que  revelou-se delicioso.



Foi então, naquele balcão, que conheci as gêmeas. Lara e Bete não eram irmãs de sangue, mas haviam nascido no mesmo dia e hora na Santa Casa de uma cidade do interior do Paraná, numa manhã muito fria de inverno. Esse fato somado a uma certa semelhança física  lhes valeu o apelido com que se apresentavam.

No dia em que nasceram, a mãe de Lara instalara-se no único quarto com aquecimento da maternidade, apesar da reserva ter sido feita anteriormente pela mãe de Bete, o que gerou durante anos uma contenda entre as famílias.

Bete nasceu roxa de frio e quase contraiu pneumonia , tendo permanecido mais uns dias na estufa enquanto Lara já reinava em casa. Durante anos esse assunto se estendeu pela farmácia, armazém, igreja e nas festanças da cidade. Mas as duas acabaram tornando-se amigas no colégio e essa amizade superou as diferenças familiares.

Viajavam de mochila havia uns dias começando por Manaus para descerem pelo litoral a conhecer esse Brasil que tanto atrai os estrangeiros.

Isso tudo me contaram as duas enquanto andávamos no centro histórico.

No dia seguinte voltei a casa de R para ter com ele uma conversa dura. Minha ausência havia surtido efeito. Ele prometeu que iria parar com a merla e realmente parou como foi confirmado, alguns meses depois, por  amigos em comum.

E assim segui, com Bete e Lara, para Fortaleza onde eu tinha compromissos profissionais e de onde as duas partiriam para Jericoaquara, Canoa Quebrada e outros lugares paradisíacos.

Na sequência revelaram que antes do nascimento de ambas, o pai de Bete era amante da mãe de Lara e, ao saberem do fato, a dupla traída também dera fluxo a um desejo que só retinham por questões morais. Os dois pares mantiveram seus casamentos não só nas aparências, mas exercendo uma vida sexual ativa também dentro de casa, apesar das brigas e ciúmes, que na verdade só faziam apimentar o que acontecia entre quatro paredes. 


Quando as duas mulheres ficaram grávidas houve muita especulação e contas sobre os calendários, pois Bete e Lara corriam o risco de serem mesmo irmãs, ou de serem filhas de pais trocados.

Mas isso só foram saber quando os pais desconfiaram que entre as duas havia mais do que simples amizade. O choque foi grande, para os pais, principalmente porque aquela relação além de homosexual poderia ser incestuosa.

E o baque também foi imenso para as duas, que além de sentirem-se culpadas, lidavam com a idéia de não serem filhas de quem pensavam. Os pais adúlteros nem podiam recriminar o que acontecera entre elas. E durante um tempo as famílias voltaram a viver um certo inferno, as meninas mais sós do que nunca, também se odiando, trocando acusações, que a mãe de uma uma era uma puta, que a outra é que era uma vadia, até resolverem pedir aos pais para que fizessem o teste de DNA.

A paz voltou entre as meninas que juntaram-se na mesma trincheira, chamando-se de irmãs e insistindo pela feitura do teste. Isso demorou alguns anos, com os pais relutando. Bete e Lara se afastaram. Bete formou-se em Terapia Ocupacional e foi fazer um estágio em Boston enquanto Lara foi para São Paulo onde formou-se psicologia e fez mestrado em psicanálise.

Quando Bete voltou de Boston, no Natal de 2003, trazendo um gringo a tiracolo, Lara regressava de Sampa dizendo-se enamorada de um psiquiatra muito inteligente e liberal que gostava de fazer sexo a três com ela e mais uma amiga.

Aquilo, Lara dizia, era perfeito.

Mas a eletricidade que havia entre as duas não havia terminado, ou melhor, estava mais intensa com a maturidade e ambas voltaram a pressionar os pais para fazerem o teste.

Finalmente fizeram em agosto de 2004 e descobriu-se que o pai biológico de uma era o pai de criação da outra, vice e versa nas duas famílias, o que causou certa consternação, mas não chegou a surpreender ninguém e, pelo menos, constatou-se que as meninas não eram irmãs de sangue.

A viagem que então faziam era para celebrar a vida, as artimanhas do destino e o aval que recebiam para o seu amor.

Isso, me contaram cheias de olhares matreiros, debaixo de um guarda-sol com caipirinha e carangueijo na praia do Futuro, em Fortaleza.

Depois de dois dias entremeando meu trabalho com momentos inesquecíveis na companhia de Bete e Lara, segui meu périplo a Salvador e nunca mais as vi. Conversamos eventualmente pela internet ou telefone e depois desse sonho e dessas lembranças liguei para ambas. Bete, cujo telefone deu como inexistente, está em Milão, foi o que me disse Lara que casou com um doutor em astrofísica. Ela disse lembrar com carinho daqueles tempos encantados, mas que a vida havia tomado outro rumo, que estava grávida e completou sorrindo que o filho era, com certeza, do seu marido astrofísico.

Sobre meu sonho, Junguiana que é, falou que o mar pavimentado e sem água significa que conteúdos que não consigo ver virão mesmo como um tsunami, que eu me prepare para grandes revelações e que voltar a encontrá-la já fazia parte dessa nova história.

A ver …